quarta-feira, 15 de julho de 2009

Quem quer ser um milionário.

Fui ver o filme meio a contragosto, por insistência de um amigo, que havia adorado. Minha resistência se devia à leitura de algumas críticas favoráveis publicadas nos jornais. Atualmente fica difícil ler alguma crítica realmente consistente nos meios de comunicação. O que de vê são textos num estilo coloquial-telegráfico-moderninho, em que não há qualquer opinião, ponto de vista, critério. Se for isto o que se ensina nas Faculdades de Comunicação, realmente é melhor não ter diploma. E se estas antas pós-modernas, que saem em série das faculdades e parecem ser todas uma só, tal a mediocridade pasteurizada dos seus textos, gostam de um filme, procuro manter uma distância higiênica.

No entanto, munido da maior boa-vontade, fui ao cinema. E comecei a detestar o filme logo nas primeiras cenas - cenas de tortura numa delegacia. É difícil transformar tamanha brutalidade em objeto estético. Mas o filme faz algo pior. As tais cenas (como, aliás, todo o filme) são realizadas com todos os tiques e truques de um filme publicitário – edição picotada, cores estouradas, closes nos rostos e corpos, ângulos inusitados de câmara, tudo isto como maneirismo, sem nenhuma função narrativa. O velho Hitchcock dizia que uma câmara dentro da geladeira é justificativa mais que suficiente para sair do cinema. Num bom filme, cada ângulo, cada movimento deve expressar alguma coisa.

Se a linguagem da publicidade e do videoclipe adotada pelo diretor serve para vender produtos, fetichizando-os (sejam eles pastas de dentes, sabonetes, carros esporte ou o novo astro da música pop), suspeitei que naquelas cenas o diretor estava vendendo a própria tortura. O diretor estava talvez tentando me fazer compartilhar com ele do gosto perverso de torturar o personagem! Um inglês que filma com prazer a tortura de um indiano, evitando sujar as próprias mãos – são outros indianos que aplicam a tortura!- ultrapassa largamente a mais depravada imaginação colonialista.

Mas eu estava enganado. A situação era pior. Pelo menos o torturador tem alguma convicção, se não de uma ideologia, pelo menos do seu gosto depravado. Aos poucos, com o passar do tempo, a perspectiva do diretor foi se tornando mais clara.

Toda obra de arte apresenta um determinado ponto de vista. Na obra de arte pura, o ponto de vista é estático, de contemplação da realidade. O artista convida o público a apreciar a obra de uma perspectiva neutra. Segundo James Joyce, as obras que não alcançam tal nível estético, as obras impuras, contaminadas pelo desejo de provocar uma reação, podem se dividir em 1) didáticas, se procuram despertar a aversão do expectador (por exemplo, as obras politicamente engajadas, que querem pregar lições de moral), ou 2) pornográficas, se buscam despertar o desejo (a publicidade, que tem por fim obrigar você a comprar o sabão em pó X em lugar dos concorrentes, os filmes de sexo, etc.).

Ao adotar a linguagem da publicidade, o filme se filia à corrente pornográfica – quer provocar o desejo do espectador por alguma coisa. Um crítico indiano falou em pornografia da miséria, mas me parece que não é propriamente a miséria que o filme vende, é algo pior.


Aliás, esta foi a impressão de todos nós que assistimos o filme naquele dia. O filme, como um peixe estragado, só vai piorando ao longo do tempo. É como se fossemos descobrindo, para usar uma imagem cara ao diretor, que por baixo da fossa infecta do seu trabalho houvesse uma fossa infinita, desprendendo um mau odor metafísico que contamina mesmo a lembrança. O melhor que o diretor poderia fazer, para o bem da Humanidade, seria reservar suas produções para seu vaso sanitário particular.


Que produto o diretor tenta vender? Seu próprio narcisismo – a visão entediada e cínica que um membro do clube dos moderninhos – cabelos raspados do lado e despenteados por horas diante do espelho, roupas descoladas, atitude blasé e cruel – tem, não da realidade, mas de si mesmo. É a pornografia do narcisismo, que provoca o prazer dos outros narcisistas que se reconhecem na absoluta indiferença pela vida mostrada na tela. Não importa torturar o personagem, cobri-lo de fezes – ali, nada importa, só mostrar a pseudo-estética publicitária dos “antenados”, que fazem gracinha com a miséria dos outros para espantar o tédio.


Não há nada mais provinciano que um cidadão do mundo. A riqueza de uma situação depende em grande parte da riqueza interior do contemplador. A pessoa que está à vontade em todo o mundo, e já não vê novidade em nada, é ela mesma um tédio, um vazio. Por isto o diretor filma na Índia e não vê nada da Índia – podia ter feito seu filme em qualquer outro lugar do mundo, onde existe miséria material (as favelas e o lixo que o diretor se compraz em mostrar) e miséria espiritual (na forma de programas de auditório).

Não é à toa que, como qualquer turista débil mental, quando quer dar uma cor local, o diretor vai ao Taj Mahal, não o Taj Mahal da história, da arquitetura, mas o Taj Mahal do cartão postal, da foto com que o viajante imbecil vai atormentar os amigos na volta da viagem. O diretor é o tal turista imbecil, e quer fazer de nós, pobre público, espectadores dos seus slides de viagem (um ritual de classe média felizmente extinto), exibindo com arrogância sua penúria intelectual. Porque somente um imbecil vai à Índia de tradições milenares e riquíssima história e se contenta com o Taj Mahal dos guias de turismo.

Num certo sentido, talvez o crítico indiano tenha razão. O filme é mesmo pornografia da miséria – da miséria intelectual do diretor, que exibe seu pobre narcisismo para o clubinho de moderninhos entediados e hipócritas.

O diretor, no seu exibicionismo, mostra-se totalmente indiferente ao destino dos personagens, que nunca se tornam reais por serem mostrados com a mais absoluta indiferença. Assim, não hesita em torturar e cobrir de fezes seu protagonista, não hesita em mostrar total falta de interesse pelas seqüelas da tortura (não há marcas psicológicas no torturado, que sai da delegacia cumprimentando os torturadores), não hesita em hipocritamente dizer que a saída da pobreza só é possível através de um milagre, que vai fazer de você um novo apresentador de televisão do terceiro mundo, mas que isso no fundo não faz nenhuma diferença. Aliás, nada faz diferença.

Alguns censuraram no filme as cenas de extrema violência. Ora, os entediados e blasés precisam de experiências sensoriais extremas para sentir alguma coisa. A necessidade do choque revela a anestesia da sensibilidade.

Outros comemoraram a trilha sonora pop, uma pobre imitação da música dos guetos negros norte-americanos, que poderia ter sido feita em qualquer lugar.

Alguns ainda elogiaram a aproximação com Bollywood. Bollywood, com raras exceções, é o lixo da produção cinematográfica indiana, o equivalente dos filmes da Xuxa, só que para adultos lesados intelectualmente.

Mas o mais espantoso é que algumas pessoas disseram que se tratava de um conto de fadas! Os contos de fadas, ao contrário do que se possa pensar, são de um absoluto realismo, transmitido através de recursos fantásticos. Como os heróis dos contos, também fomos chamados à aventura de viver, também devemos vencer desafios, também encontramos no caminho antagonistas e auxiliares, e, se bem sucedidos, trazemos as vantagens de nossas conquistas para a comunidade a que pertencemos. O filme na verdade é o inverso de um conto de fadas – no seu ultra-realismo tacanho se revela profundamente irrealista, porque não reflete o mundo e as pessoas, reflete a mente totalmente absorvida por si mesma do diretor, revela o seu narcisismo doente, que faz pouco da realidade psicológica do conto de fadas, piscando o olho para os outros narcísicos que no fundo não acreditam na possibilidade de milagres. Nada inesperado pode surgir num mundo que é ocupado totalmente por um ego gigantesco e vazio.

Se o leitor quiser ver uma verdadeira obra de arte, que adota uma perspectiva ocidental colonialista sobre a Índia, recomendo O Rio Sagrado, de Jean Renoir. Recomendo também a série de televisão O Mahabbharata, versão do grande épico hindu, dirigida por Peter Brook, com um interessante elenco multicultural. O filme me parece captar o espírito da cultura milenar indiana. Há também um bom cinema indiano, exemplificado pela Trilogia de Apu, do diretor Satyajit Ray.

3 comentários:

  1. Belíssima exposição. Vim aqui fazer um comentário apenas esclarecedor: Não fui eu o amigo a arrastar nosso pobre Roberto a esse filme. Eu também me vi convencido (contra meus instintos iniciais) a ir ver a meleca pseudo-hindu, e senti similar repulsa.

    A única coisa boa desse filme é poder massacrá-lo depois. Claro, preferiria a amnésia.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Recentemente, ao rever as críticas ao filme nos principais meios de comunicação do mundo, me surpreendi: os elogios eram praticamente unânimes! Somente um crítico português conseguiu sentir o cheiro nauseabundo da porcaria. O que me lembrou o conto de Andersen, A Roupa nova do Imperador. Os meios de comunicação são dominados por uma pseudointelectualidade moderninha que impede o verdadeiro pensamento, e dita a moda para a maioria acéfala. Outro dia, li uma frase no para-choque de um carro que vem bem a propósito: não se preocupe com o que as pessoas pensam de você- elas fazem isto muito pouco.

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